De Palavras e Sonhos

quarta-feira, dezembro 28, 2005

...e a alma doía.

Era uma vez um tempo onde tudo estava morto e parado (o futuro de um presente em curso). Um mundo sem cores, sem risos, choros ou simples palavras.
Sinais de vida vinham quando as sombras quebravam o desenho estático das cidades, mas apenas durava uma hora e uma só. Durante esse bocado de tempo, a ilusão desaparecia e a realidade voltava.
Sem isso…havia apenas silêncio.

Demoraram muitos anos até chegarem onde chegaram – à deriva, diriam alguns que acabaram por desaparecer a meio da viagem – mas acabaram por conseguir.
O mundo tinha fugido de maus dias de guerras, querelas e sentimentos errados. E para impedir que isso voltasse a acontecer, cada pessoa começou a ocultar-se, a calar-se e a não mostrar o que sentiam verdadeiramente, porque tinha sido a viver e a mostrar o que se tinha por dentro, que tanto sofrimento tinha destruído inúmeras vidas nas gerações anteriores – assim pensavam elas – ao mesmo tempo que procuravam algo de novo.
Mas a alma da pessoa nasce com uma densidade, ela não vem vazia e nem o seu conteúdo é verdadeiramente alterável.
Assim, ao mudar para algo novo, ela suspende o que antes continha, causando um conflito entre o novo conteúdo e a matriz humana original.
E lentamente, começaram, uma a uma, a apagar aquilo que tinham desde que nasceram, rejeitando antigos valores e ensinamentos, por outra realidade ética e consequentemente relacional. Todos, ou quase todos, estavam de acordo que o que vinha detrás era obsoleto, sem sentido e demasiado restritivo à liberdade de cada um deles.
A mudança tinha começado, e com o tempo as coisas continuaram a piorar.
As relações humanas passaram a basear-se em prazer, satisfação medíocre e as personalidades em convenções.
O mundo tinha-se enchido de coisas e as pessoas estavam felizes.
Nascera assim uma nova geração, um novo Homem.

O sol do início ao fim do dia parecia iluminar a vida daquela gente…à excepção de uma hora. Durante essa hora ninguém era…
Quando o sol deixava de bater nos olhos e o meio-dia chegava, todos se apercebiam do que lhes tinha acontecido. Durante essa hora, em que o Sol estava por cima deles, a realidade tão querida daquele mundo perdia consistência e as sombras das pessoas desapareciam.
Elas próprias, sem nada de puro e verdadeiro que as preenchesse, sofriam de transparência em dores agonizantes: a alma, aprisionada, doía a cada um deles.
Também, era nessa hora que aqueles que se tinha pensado terem deixado este mundo, reapareciam.
Em verdade, a essência a partir da qual as pessoas tinham construído o seu novo mundo é que não era compatível com aqueles que tinham preferido viver do pão que Deus lhes tinha dado, expulsando-os assim, da existência que conheciam.
Já visíveis, tentavam por tudo para encher de coragem aqueles cuja memória guardava ainda marcas de uma alma completa e original.
Não era fácil a conversão, não numa hora. Por isso, todos os dias, era uma luta por fazer renascer uma vida.
Dias após dia esperavam que as outras 23 horas não apagassem a consciência da ilusão trazida pelo sol. Estávamos a perder algo, não a ganhar.
E até que a última pessoa ganhasse novamente uma sombra, o mundo permaneceria estático para aqueles que ainda lá viviam, como se um dia tivesse sido retirado do tempo, da evolução humana.

Uma realidade de que eles não tinham consciência…tinha sido o preço a pagar.
A moeda de troca pela nova vida foi, sem se aperceberem, a insegurança e o vazio obtidos em sentimentos que nada tinham de verdadeiro e duradouro.
Délio Melo quarta-feira, dezembro 28, 2005

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